Flávio Aguiar - Instantâneos |
Coluna CELPCYRO |
Santos, 194…
Santos, porto paulista. Getúlio no exílio em São Borja, Dutra no poder. Palavra de ordem baixada pelo Partidão: “Ordem e Tranqüilidade”. Comício no cais. Multidão compacta de estivadores agitados. No palanque o orador se anima: - Nós vamos beber o sangue desta burguesia! O comissário do Partidão franze o sobrolho e olha feio para ele, que completa: - Sim, mas dentro da ordem e da tranqüilidade!
Ainda em Santos, 194…
Aula de formação de quadros para o Partidão. Tema: História do Brasil. Alunos: operários da cidade, estivadores. Professor: militante jovem, entusiasmado. Ele explica: - Acontece uma Revolução quando uma classe social perde o poder para outra. Na França, no século XVIII, houve uma Revolução porque a aristocracia perdeu o poder para a burguesia. Mas e no Brasil, quando veio a Proclamação da República, foi uma Revolução? Seu Joaquim levanta a mão: - Não, professor. - Muito bem, Seu Joaquim, de fato não foi uma Revolução. Por quê, seu Joaquim? - Porque não correu sangue, professor!
América Latina, 196…
Anos sessenta. Congresso de intelectuais latino-americanos. Pesos-pesados presentes. Como era costume nesses encontros, ao final vai sair uma declaração sobre a unidade latino-americana. Nomeia-se uma comissão redatora. Pelo Brasil, o professor Antonio Candido. Para ler a minuta, Miguel Ángel Astúrias, da Guatemala. Vem a proposta. Astúrias começa: - La unidad de America Latina se ha hecho necesaria desde el momento en que el primer soldado español puso su pie en el continente… Pausa. Todos olham para o professor Antonio Candido. O professor olha para todos e para Astúrias, que recolhe os papéis e sai da sala. Volta, e recomeça: - La unidad de America Latina se ha hecho necesaria desde el momento en que el primer soldado español y el primer soldado portugués pusieron sus pies en el continente…
Porto Alegre, 1967
Grossa pancadaria na Praça da Matriz, em frente ao Palácio do Governo. Estudantes versus Guarda Civil e Brigada Militar. Os policiais civis com seus velhos cassetetes de borracha. Os brigadianos estreando os novíssimos cassetetes de madeira, long size. Uma parte dos estudantes envereda Catedral Metropolitana adentro, onde foi espancada sob o olhar complacente da Santa Madre. Outra parte foge pela Rua Duque, em direção à Ponta da Cadeia. Na carreira, passam defronte o Solar dos Câmara, vetusta casa de 1818. Uma velhinha fecha os postigos. Entreouve-se seu comentário: - Mmmm… Esses republicanos não aprendem…
São Paulo, 1971
Doi-Codi, o antro da repressão da ditadura em São Paulo. “Caídos”, eu e meu irmão Rogério somos levados para uma das celas do xadrez, a X-4. Lá dentro já estão dois prisioneiros, um bastante jovem, outro mais velho e calvo. Fazemos as apresentações. O mais jovem se adianta: - Eu sou Fulano, militante. É a minha vez: - Eu sou Flávio, estudante. Meu irmão: - Eu sou Rogério, psiquiatra. E o calvo, estendendo a mão: - Muito prazer. Eu sou Beltrano, esquizofrênico. Foi impossível não rir.
Lisboa, 1989.
Passeio em Lisboa. Eu e Iole, minha companheira. O chofer é seu Domingos. Ele nos mostra: - J’viram a pont’? - Que ponte? - A da tr’vessia do Teijo! - É uma ponte bonita. - Poix qu’am m’ndou conxtruire foi o Salazaire. Sabe, o Salazaire era um tipo assim meio f’xista. M’x tinha boax idéias de vêx’n quand’u. - Como assim? - V’ja a pont’. Os americanox conxtruiram a pont’. Puseram todo o dinhairo. P’rtugal não pox um toxtão. Bom, é v’rdade que o Salazaire deu pr’uz am’ricanox o pâd’ágio, e deu por uma penca de anox. Quer dizer, os portugueses p’garam, mâx P’rtugal não pagou! E eu: - É isso aí, seu Domingos!
Vale do Ribeira, 1994.
Eleições, 1994. Sou candidato a deputado federal pelo PT. Faço campanha no Vale do Ribeira, uma das regiões mais pobres de São Paulo e do Brasil. Percorro bairros de periferias, ruas de areia, barro e miséria. Um morador se acerca: - Doutor, preciso de uns blocos pro muro da frente da minha casa… - Olhe, eu não vou comprar voto com blocos de concreto… - Tá bem, doutor, mas se eu prometo não votar no senhor, o senhor me consegue os blocos?
Universidade de São Paulo, 2002.
Greve de professores e funcionários nas universidades estaduais paulistas. Concentração de grevistas em frente à Reitoria da USP. Revolta. Uma jovem vai ao microfone: - Companheiros, companheiras, os Reitores das Universidades não querem dar reajuste de salário! Não pode isso! (Aplausos) Pessoal, eles querem dar zero por cento! Nós não podemos aceitar isso! (Mais aplausos) Zero por cento, pessoal, é quase nada! A platéia caiu na gargalhada e aplaudiu de novo.
Porto Alegre, 1961
O Piquete Farroupilha Final de agosto de 1961. O presidente Jânio Quadros renuncia. Os ministros militares decidem impedir a posse do vice-presidente João Goulart, em viagem pela China. O governador Leonel Brizola resiste. Intimado a se render por um telefonema de Brasília, responde: “ninguém vai dar o golpe pelo telefone”. E desliga. Entrincheirado no Palácio Piratini, convoca a Rádio Guaíba para fazer seus pronunciamentos. É o começo da célebre Rede da Legalidade, que depois se estenderia pelo país inteiro.
Á frente do Palácio,na Praça da Matriz (como em Porto Alegre se conhece a Praça Marechal Deodoro) o povo se aglomera. Compacta, a multidão está disposta a resistir. De repente, pelo rádio, o governador toma a palavra. Dirige-se ao povo riograndense, ao Brasil. Despede-se. Anuncia que os ministros militares cometeram a loucura de mandar os jatos Globe Meteor, estacionados na Base Aérea de Canoas, bombardear o Palácio. Diz que vai resistir até a morte. Pede ao povo que se afaste, para não haver um morticínio. Ninguém arreda o pé. Perguntas angustiantes atravessam a praça: - Virão os tanques do Regimento Blindado da Serraria atacar o Palácio? - As corvetas da Marinha, estacionadas no porto, atirarão sobre ele? De repente, ouve-se um tropel de cavalos para os fundos da rua Duque de Caxias, lado do Colégio Sevigné, que desemboca na praça: - Pocotó, pocotó.
Os cascos ferrados retinem nos trilhos de bonde. Um piquete de cavalarianos assoma na curva da rua. À frente, a bandeira riograndense verde, amarela, vermelha, a bandeira de 35, atrás dela a grave tropa de cavalarianos pilchados à gaúcha, bombachas, ponchos, chapelões alguns jogados para trás. Um frêmito percorre a praça. São os legendários cavaleiros de Bento Gonçalves, de Netto, de Garibaldi, os Lanceiros Negros de Teixeira Nunes que renascem do fundo da história para engrandecer a resistência!
Os cavaleiros vêm chegando. Apesar de compacta, a multidão se abre para deixar passar a legenda, que logo chega à frente do Palácio que leva seu nome: Piratini. Um sargento sai de trás da trincheira de sacos de areia ali improvisada e pergunta, animado: - Vieram se ajuntar à resistência? A resposta vem pronta, do líder embandeirado: - Êpa! Nós semo de dança, não semo de briga! É o CTG Rincão da Lealdade que veio aqui adevertir o povo que está reunido!
Verdade seja dita: os jatos não vieram, os tanques vieram sim, mas para conter as corvetas da Marinha no porto. Naquele dia o povo ganhou. Com legenda e tudo.
De Berlim, em fevereiro de 2013.
|