A felicidade da inquietude – Jane Tutikian |
Além da Letra - Acontecências |
A FELICIDADE DA INQUIETUDE*
De repente, as pessoas se agitaram. Era ele. Sorria para os convidados. Cumprimentos feitos de gestos sóbrios, simpáticos, de quem tinha consciência do que era e era Umberto Eco. A mim, cabia falar sobre ele para ele. Penso que consegui.
Como grandes poetas e escritores, Eco buscou no menino Umberto as razões que fizeram dele o homem que foi, e fez desse encontro momentos de afeto, feitos de um olhar condescendente, humorado e orgulhoso. Os avós tiveram importante influência na sua vida. O avô era um leitor voraz e, quando morreu, o menino descobriu sua caixa de livros no porão da casa. A avó materna, por sua vez, trazia para o neto, semanalmente, da biblioteca da cidade, três ou quatro volumes. Dela veio o gosto pela leitura. Da mãe, o gosto pela escrita e os primeiros exercícios de estilo. As aventuras proporcionadas pelos três foram tão prazerosas e estimulantes para o menino que, mais do que ler e brincar de escritor, produzia o livro, ilustrava, fazia a capa. “Óbvio”, diz Eco, “que, depois de algumas páginas, abandonava a empresa. Assim fui, naquela época, autor apenas de grandes romances inacabados.” É na primeira parte de Como Escrevo (2003) que Eco expõe as memórias de seus escritos inaugurais. Adulto, seus primeiros trabalhos voltaram-se para a estética medieval, sobretudo os textos de São Tomás de Aquino.
Foi a partir da década de 60, que se lançou ao estudo das relações entre a poética contemporânea e a pluralidade de significados, do que resulta Obra Aberta (1962). Ainda nesta década, Eco destacou-se pelas reflexões sobre a cultura de massa, em especial nos ensaios de Apocalípticos e Integrados (1964). Nos anos 70, passou a tratar quase que exclusivamente da semiótica, produzindo importantes textos, segundo pressupostos buscados em filósofos como Kant e Charles Peirce. São notáveis os ensaios de As Formas do Conteúdo (1971) e o livro Tratado Geral de Semiótica (1975). Como consequência de seu interesse pela semiótica e pela estética, Eco passou a trabalhar sobre a cooperação interpretativa dos textos por parte dos leitores. Lector in Fabula (1979) e Os Limites da Interpretação (1990) são marcos dessa produção.
Para além da carreira universitária, aos 48 anos, publicou o famoso O Nome da Rosa (1983), um mistério intelectual que combina semiótica, ficção, análise bíblica, estudos medievais e teoria literária. A obra inaugural do suspense erudito. Os anos seguintes foram de ensaios, trabalhos acadêmicos e romances aclamados pela crítica. Na verdade, foi um dos poucos autores que conseguiram conciliar o trabalho teórico-crítico com produções literárias, exercendo importante influência nos dois campos.
Para Umberto Eco, na criação, não existe um caminho único, aliás esta foi sua grande recusa. Para ele, pode-se escrever um romance a partir de uma pesquisa ou um ensaio. Foi o caso de O Pêndulo de Foucault (1989), a conspiração de sociedades secretas com intenções de governar o mundo, que nasceu de uma teoria. Baudolino (2002), por sua vez, resultou de ideias elaboradas em torno da falsificação. Assim, segundo o autor, a invenção pode produzir a realidade e o contrário também acontece. Depois de escrever O Cemitério de Praga (2011) — onde a única figura inventada é o protagonista Simone Simonini, provando que basta falar de algo para esse algo passar a existir —Umberto Eco teve a ideia de elaborar uma teoria, que resultou no livro Construir o Inimigo (2011). Significa dizer que nada impede também que uma teoria nascida de uma obra de ficção redunde em outra ficção.
Reconhecendo um recuo para a narrativa linear e clássica, afirma o escritor: “Contar uma história que emocione e transforme quem a absorve é algo que se passa com a mãe e seu filho, o romancista e seu leitor(...) A força da narrativa é mais eficaz que qualquer tecnologia.” A literatura, portanto, resiste. “Sinto-me mal dentro deste tempo e só posso experimentar compreendê-lo escrevendo para fugir ao mal-estar.” Número Zero (2015), seu último romance, corrobora essa afirmação. Para Eco, a abundância de informação irrelevante e a perda de memória do passado é um dos grandes problemas do nosso tempo: “Se a memória é a alma, diminuir muito a memória é diminuir muito a alma.”
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