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obra completa Sobre Cyro Martins Estante do autor



Discurso de Tira * - Cyro Martins  E-mail
Estante do Autor - histórias vividas e andadas

 

                              Sou do tempo do discurso de tira. Os oradores, geralmente ocasionais, cortavam folhas de papel almaço, de alto a baixo, em duas tiras e nelas escreviam seus discursos. O meu primeiro discurso foi escrito em tiras de papel almaço. Tinha, então, quinze anos. Já andava às voltas com a palavra escrita, uma diaba rebelde, manheira como lenha molhada. E a propósito, antes de seguir adiante, me ocorre lembrar que, na madrugada do mundo, segundo o mito bíblico, Deus fez isto e quilo, tudo em seis dias. O sétimo ficou para descanso. Os feriadões parece que não estavam nos seus propósitos, apesar dos insistentes boatos que até hoje correm mesmo na crise do PC Farias, de que Deus é brasileiro. Mas o que desejo ressaltar é que o principal, depois de estarem Adão e Eva prontos, embasbacados com as delícias do paraíso, Deus não ordenou: falar! Esse foi o primeiro ato falho universal do criador. Cometeria outros no decorrer dos milênios. Não os trarei à tona neste momento. Mas é insopitável a pergunta a cerca do primeiro. Que desígnios ocultos estariam acoitados nesse conflito do Senhor? Esse segredo não foi nunca desvendado e não o será jamais, mesmo porque, a esta altura dos tempos a idade do Senhor já não é compatível com uma análise. Entretanto, os homens não se conformaram com a mudez animal. E começaram a grunhir quando tinham medo, sobretudo das degolas dos pica-paus e dos maragatos em 93; a engrolar sons querendo expressar amor, até chegar ao mavioso nome de Iracema, a virgem dos lábios de mel. Ao longo da evolução, essa conquista da palavra ocasionou infindáveis circunstâncias, sendo a mais singular e mais bela a ocorrida com Miguel Ângelo que, perplexo ante a perfeição do seu Moisés, exclama: Parla!

 

                              Mas as minhas pretensões, nesta fala entre amigos, são bem mais modestas do que essa contradança tragicômica da criação. Não sei por que, ao abrir a máquina para escrever estas mal traçadas linhas, recordei aquele meu primeiro discurso, vibrante e ingênuo. O porquê dessa recordação? Só a análise da cadeia de continuidade que liga pessoas e fatos e sonhos nos levaria à compreensão dessa lembrança inesperada, escondida numa esquina da memória, com suas revelações surpreendentes a propósito da comparsaria de figuras reais e imaginárias que povoam minha fantasia e que este ato as põe em alvoroço. Sim, um abraço grande como este que vocês estão me dando faz com que muitas personagens saiam da penumbra e venham, pirandelescamente, reclamar sua cota de presença na festa.

 

                              Para a média da vida humana, 84 anos representa um palco imenso. Nele cabe uma infinidade de atores,Alguns graciosos, outros enfadonhos, a maioria gente de saudosa memória; uns raros chegamos a conhecer bem, outros somente através do nosso espelho íntimo, graças a Freud, que ensinou aos homens o uso da palavra como pesquisa e terapêutica, mais do que qualquer outro mestre. É assim que, quando atingimos os domínios da grande personagem abstrata, "o nosso interlocutor íntimo", a vida adquire um sentido imprevisto.

 

                              Embora tenha viajado relativamente pouco, sempre gostei das estradas, até das aéreas. Não teria sido em vão que nasci e passei a infância na beira duma estrada real, por onde circulava o mundo pequeno e o mundo grande. O pequeno era o da vizinhança, sem mistério. O grande, o dos viajantes, cujo destino, a perder de vista, tanto me intrigava. Esses dois mundos balançaram, durante anos, o pêndulo de minha fantasia de criança entre o real e o irreal. E foi assim que, povoada de sombras e clarões, muito cedo a minha imaginação começou a galopar na esteira das impressões cotidianas.E ainda bem que o menino, de imaginação atuante, pôde juntar os efeitos desses estímulos visuais e auditivos e os materializar em rodeios de brinquedo. Mas logo ali, na adolescência, acomodei os recuerdos na pauta novelística.

 

                              Estou entre amigos. Que maravilha ter amigos aos 84 anos de idade! Mas não estranho o fenômeno. Sempre tive amigos. Com eles aprendi mais do que nos colégios e na Faculdade. Os meus amigos foram e continuam sendo a minha escola de humanidade, eles me ajudaram a representar o meu papel no palco da vida. Nas horas amargas, foi sempre uma mão amiga que me trouxe à tona, que me fez voltar "ao claro sol, amigo dos heróis", cuja luminosidade anula o feitiço das bruxas e revigora o coração dos homens no regaço do amor.

 

                              Eis aí, meus queridos amigos e amigas, o meu agradecimento num discurso de tira.

 

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* Palavras de agradecimento de Cyro Martins pela homenagem recebida por ocasião de seu 84o aniversário, em 05 de agosto de 1992.